- Padre, eu sou um pecador.
- Todos nós somos, meu filho.
- Mas eu cometi um grande pecado, padre.
- Que pecado, meu filho?
- Eu matei uma pessoa.
- Como?
- Eu matei, na verdade, vou matar uma pessoa.
- Mas você não pode fazer isso, meu filho. É abominável, inaceitável.
- Por que, padre?
Dentro do confessionário foram ouvidas algumas tossidas.
- Porque esse é um pecado imperdoável – disse o padre.
- Matar é sempre um pecado, padre?
- Claro, meu filho. Deus disse não matarás.
- Em qualquer situação, padre?
- Sim, meu filho, matar é sempre um pecado.
- Mesmo que seja por legítima defesa ou um aborto em caso de estupro?
- Sim, em qualquer caso a vida tem que ser defendida.
- O que acontece com que mata outras pessoas, padre?
- Vai para o inferno, meu filho.
- E Moises padre? Quando mandou matar os adoradores do Bezerro de Ouro? Ele foi para o inferno também?
- Mas ai foi diferente, meu filho, eles eram pecadores...
- Então eu posso matar pecadores?
- Não foi isso que eu quis dizer, meu filho. Só que, veja bem...
- Como é o mandamento padre?
- Não matarás.
- Só?
- Sim.
- Não existe por acaso alguma ressalva? Algo como: não matarás, exceto os pecadores.
- Não, meu filho, não existe.
- Então Moises pecou e foi para o inferno?
O acesso de tosse do padre aumentou. Dentro do confessionário o homem sorria discretamente.
- Meu filho, você está distorcendo minhas palavras. Além disso, a questão a ser debatida não é essa.
- E qual é a questão, padre?
- O fato de você pretender matar alguém, meu filho, isso é errado, isso é pecado.
- No início da conversa, você disse que todos nós somos pecadores. Lembra-se?
- Sim, meu filho. Mas isso não vem ao caso.
- Sim, isso vem ao caso, padre. Se todos somos pecadores, o senhor também é. E se o senhor é um pecador, seguindo a sua própria teoria sobre Moises, eu posso matá-lo, sem cometer nenhum pecado. Sem ir para o Inferno.
- Mas o que isso tem haver com o seu caso – disse irritado. – Já estou perdendo a paciência, meu filho.
- Eu vim matar o senhor, padre.
- O quê?
- Eu vim matar o senhor, padre. Mas... Para provar que sou uma pessoa bondosa, vou lhe dar uma chance. Aqui, – disse o homem, jogando um embrulho para dentro da cabine do padre, – está uma arma carregada. Para se salvar, basta me matar.
- Eu não posso fazer isso, meu filho, é loucura.
- Pode sim, padre, e se quiser sobreviver é melhor fazer.
- Não vou fazer. Meu filho, acabe com essa brincadeira idiota e saia daqui antes que eu chame a policia...
- Eu vou contar até três, padre, e se você quiser se salvar vai ter que atirar em mim.
- Pare com isso, meu filho, eu vou, eu vou...
- Então, padre, como vai ser? O que é mais forte? Tua fé no mandamento, tua interpretação literal dele, que como o senhor mesmo me disse, impede o assassinato em qualquer hipótese ou tua vontade de viver, teu instinto de sobrevivência que vai fazer você me matar para se salvar?
- Nenhum dos dois, sai daqui, antes que eu...
- Um.
- Pare com isso, meu filho, essa brincadeira não tem graça...
- Dois.
- Pare com isso agora, você ainda tem tempo e...
- Três.
- Não! – gritou o padre.
Ouviu-se um estampido. O confessionário ficou cheio de uma fumaça negra e com cheiro de pólvora. Quando a fumaça baixou, o padre ainda estava com a arma apontada para o homem, suas mãos estavam trêmulas e o seu dedo ainda estava no gatilho.
- HAHAHAHAHAHAH! – riu o homem do confessionário.
- Mas... Como? – perguntou o padre.
- Festim, padre. Essa arma está cheia de festim.
- Você acha que eu realmente iria lhe dar uma arma carregada? – perguntou o homem.
- Mas... Por quê? - disse o padre.
- Por quê? Por que você atirou? Sobrevivência, ninguém resiste à sobrevivência. Nem mesmo um padre. Quando nossas vidas estão ameaçadas, qualquer crença moral ou religiosa e tudo aquilo que possa ser chamado de princípio, valem menos que poeira ao vento.
- Mas, por que tudo isso? Por que essa brincadeira? Tudo isso, toda essa tensão, foi feita por puro sadismo?
- Sadismo? Não. Eu vim aqui para te matar, padre.
- Então tudo isso foi brincadeira? Depois de tudo isso você ainda vai me matar? Como ainda tem coragem de dizer que não é por sadismo?
- Eu já matei – disse o homem, levantando-se do confessionário.
- Matou o quê?
- Eu matei tua hipocrisia, padre – disse o homem antes de sair da igreja.
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